sábado, 29 de dezembro de 2007

Cachacinha Harmônica

Acho incrível o talento que algumas pessoas têm em complicar as coisas mais simples da vida. Quem costuma ler sobre gastronomia já deve ter reparado que a última moda em termos de bebidas é se elas harmonizam com o prato servido. Sou do tempo que a bebida combinava ou não! Mas, moda é moda e cai em suas armadilhas quem quer. Sou a favor de seguir a intuição... eu e o Bigode, um legítimo dono de boteco!

Cachacinha Harmônica

O Bigode sempre se orgulhou de ter o boteco mais querido e freqüentado do bairro. De domingo a domingo, há 35 anos. Viu a maioria dos atuais freqüentadores nascer e crescer. Era um boteco tradicional, clássico. Um boteco de bairro.
O Bigode, um senhor de bons modos e bom bigode, não imaginava sua vida de outra maneira. Amava seu boteco como quem ama um filho. Não tinha clientes, tinha amigos, gostava de lembrar. Era amável com todos e talvez esse fosse um dos segredos de seu sucesso, mas não era só isso.
O bar do Bigode servia o melhor bolinho de bacalhau da região – “...de bacalhau mesmo!” sempre anunciava antes de servir- sem falar do torresminho, os pasteizinhos – “...fritos na hora e no óleo novo!” – o escondidinho... tudo servido em deliciosas e generosas porções . O chope sempre impecavelmente gelado, as cachacinhas (as famosas cachacinhas do Bigode!), os licores, até o pingado era de primeira.
A passadinha no bar do Bigode era praticamente uma obrigação. O dia não ficava completo sem aquela visitinha ao amigo Bigode. Sempre uma festa! Uma tradição.
E de manter tradições, Bigode entendia bem. Seus amigos admiravam isso nele. Ainda que falassem que era antiquado, não tirava seu bigodão. Café feito no coador de pano? Pra que mudar se todo mundo gosta tanto?! Ovos coloridos na vitrine? Boteco que é boteco tem de ter!
Alguns dos amigos mais jovens, porém, começaram a falar de coisas que o Bigode nunca tinha ouvido falar. Café gelado? Caipirinha de saquê? Era um homem de tradições, mas não era de ficar parado no tempo. Resolveu, então, dar uma atualizada no seu repertório. Deu uma escapadinha do bar, foi a uma banca e comprou algumas revistas especializadas em gastronomia.
Leu. Leu. Leu. Achou tudo muito estranho, mas pensou que podia usar algumas coisas que tinha lido ali. Decidiu: era hora de modernizar, afinal, estávamos no século XXI! Além disso, se não o fizesse, os concorrentes o fariam. Não queria ficar pra trás, esquecido, encalhado no passado. Ia modernizar.
Alguns dias depois, resolveu colocar seu plano de modernização em prática. Estava nervoso, ansioso. Por volta das dezenove horas, horário de maior movimento no bar, Bigode decidiu: a gastronomia se modernizou, ele também:
- Seu Bigode, mais uma dose pra mesa dois!
- Pode deixar que eu mesmo sirvo!
Serviu a dose, atravessou o salão, aproximou-se do amigo na mesa dois, colocou a mão no ombro dele, abriu um sorriso:
- E aí, seu Zé, a cachacinha harmonizou com o escondidinho?
- Heim?! – perguntou o amigo sem entender o que o Bigode queria dizer com aquilo.
-Ah, Zé... tô perguntando se a cachacinha tá harmonizando com o escondidinho...
– Olha, Bigode, se eles brigaram eu não sei, mas que esse escondidinho com essa cachacinha nasceram um pro outro, ah, isso nasceram, sim! Manda mais uma!
Bigode percebeu que em time que está ganhando (há 35 anos!) não se mexe. Tradição é tradição e com cachaça não se brinca: ela não harmoniza, desce bem ou não!

Nenhum comentário: